Uma
versão preliminar deste texto foi publicada no jornal "Correio do
Cidadão", de Campo Mourão, na edição do dia 30/10/2012. Reflexões que
passo a compartilhar com todos aqueles que, assim como eu, se preocupam
com uma universidade que seja mais humanística e menos mercadológica e
tecnológica, apesar de seu nome.
O
autor, Emílio Gonzalez é historiador e professor na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná - UTFPR/Campo Mourão, coordenador da "Semana da Consciência
Negra" e coordenador do projeto de Extensão "Uni(di)versidade Cultural:
Cultura e Diversidade em Debate" (MEC/PROEXT/UTFPR).
Lia o texto a seguir:
A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA. A GENTE QUER BEBIDA, DIVERSÃO E ARTE!
No sábado passado (27/10), professores, alunos e a comunidade em geral
de Campo Mourão tiveram a grata oportunidade de testemunhar um
importante capítulo da história da UTFPR: o Sarau, evento cultural que
proporcionou uma agradável tarde e trouxe vida ao afastado (e geralmente
desértico, nos finais de semana) câmpus universitário da UTFPR. É a
terceira vez que o evento é realizado nos últimos doze meses, tendo sido
iniciado, heróica e de maneira autônoma, no final do ano passado, por
iniciativa dos próprios estudantes. Como nos encontros anteriores, nesta
ocasião, form os alunos do curso de Engenharia Ambiental que
arregaçaram as mangas e decidiram quebrar a monotonia das tardes de
sábado no câmpus, promovendo um evento que teve mostra fotográfica,
varal de poemas, teatro e muita, muita música. O evento se iniciou por
volta das 16hs, com o rapper Renan (R.N.A.), de Campo Mourão. Não
acompanhei desde o início, mas tive a oportunidade de testemunhar um
pouco deste ambiente culturalmente heterogêneo. Quando voltei para
casa,, já passavam das 22 horas, e a festa seguia animada no palco
improvisado montado num gramadão atrás do ginásio Belin Carolo, no
interior do câmpus. Por ele, passaram bandas de rap, reggae, blues, rock
e tantos outros ritmos (alternativos ou clássicos) que há décadas
exercem grande grande fascínio e influência entre ativos e engajados
jovens universitários. Em que pese a ameaça de uma forte tempestade que
começou a se desenhar no horizonte (por volta das 20hs), os estudantes
seguiram firmes por lá, resistindo aos primeiros pingos que, pela graça
de Orfeu, deus grego das Artes, não chegaram a se concretizar em chuva,
garantindo a festa.
Colocado em retrospectiva histórica, o que
haveria de “inédito” no (significativo) fato de estudantes
universitários promoverem cultura? A pergunta é absolutamente
necessária. Afinal, cultura e universidade sempre foram dois irmãos
siameses, que nascem e se desenvolvem juntos, inseparáveis. Mesmo em
momento mais críticos da nossa história recente, como na Ditadura
Militar, a universidade operou como um espaço quase que autônomo de
produção crítica que se materializava através da arte, subsidiando a
reflexão sobre a realidade que estava vedada a outros meios (imprensa,
jornais, movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, etc). Muito
da produção de resistência ao regime ditatorial instaurado em 1964, bem
como inúmeros movimentos em prol da redemocratização (1985) deram seus
primeiros passos no interior das universidades. E não foram poucos: o
CPC da UNE, o Cinema Novo, o Teatro de Vanguarda, o Pasquim, os
Festivais (onde surgiriam Chico Buarque, Caetano, Gil, Capinam), os
primeiros embriões das Diretas Já!... E mesmo hoje, em meio à
avassaladora massificação cultural que grassa pelas rádios e TVs do
país, as universidades permanecem sendo uma importante referência para
aqueles que desejam construir algo de novo, de diferente, livre das
amarras e limites estabelecidos pela indústria cultural e pela grande
mídia, resistindo através de seus espaços culturais autônomos, teatros
públicos, projetos de Extensão socialmente engajados (e deveria ser
diferente?), rádios comunitárias e movimentos estudantis, entre outros.
Neste quadro, por repetido que possa parecer, é bastante expressivo
pensarmos iniciativas como aquela feita pelos estudantes da UTFPR. Estes
estudantes, futuros engenheiros deste país, no fundo, conscientemente
ou não, parecem contestar e rejeitar a idéia (dominante entre alguns
círculos) segundo a qual a UTFPR teria uma “vocação tecnológica”, e que
esta vocação estaria acima de outro conceito primordial (e que, na
verdade, o antecede), que é o de “universidade”. Universidade é
universo. É um conceito amplo onde cabe muita coisa: o mercado de
trabalho, a pesquisa científica, a inovação tecnológica, as necessidades
do capital... Mas no conceito “universidade”, também cabem outros
adjetivos fundamentais, mas que muitas vezes são desprezados (de forma
intencional) numa conjuntura neoliberal onde tudo se transforma em
mercadoria, e seu valor e importância passa a ser estabelecido de acordo
com a possibilidade de se cotá-los e vendê-los no mercado. Universidade
é ciência, é mercado, mas é também cultura, diversidade, palco de lutas
por direitos sociais, espaço da reflexão crítica sobre o presente,
suporte histórico da transgressão das verdades e da moral estabelecida e
incontestáveis numa determinada época... Em suma, a universidade é
também espaço da produção do novo. Por isto que, em contextos altamente
massificadores, como o atual, a universidade deve se apresentar como um
espaço – às vezes, o único que resta – da construção de novas
alternativas e experiências. Se hoje, como estudantes, os alunos não
puderem refletir criticamente e produzir questionamentos sobre os
processos sociais e tecnológicos, amanhã, como assalariados e
dependentes dos critérios de excelência e produtividade estabelecidos
pelo capital é que não poderão mesmo. Por isso considero tão simbólico e
vejo, esperançoso, que nossos futuros “engenheiros”, conscientemente ou
não, ao agirem a favor da ocupação das tardes de sábado em prol da
construção de espaços alternativos de reflexão e cultura, parecem estar
rejeitando um modelo de universidade baseada apenas na repetição de
números, estatísticas, fórmulas, cálculos e teoremas, ou seja, das
verdades científicas estabelecidas de antemão, onde desaparece o homem e
sua capacidade de questionar verdades canônicas.
Mas nossos
estudantes querem mais do que números e resultados exatos. Eles querem a
subjetividade da vida. Querem poesia. Querem completar algo que a
produção acadêmica, a boa colocação no mercado de trabalho, a pesquisa
científica, as patentes e o lucro jamais poderão preencher. Os mesmos
engenheiros ambientais que no futuro ajudarão a produzir nosso alimento
já se aperceberam de outra necessidade: o mundo não precisa só de
comida. O mundo precisa de diversão e arte, de prazer e subjetividade,
como sugere a conhecida canção do conjunto Titãs.
Quem convive no
cotidiano da UTFPR/Campo Mourão sabe o quanto isto pode ser
transgressor. Nossa universidade ainda precisa avançar muito na produção
de espaços culturais alternativos. E me refiro não apenas a espaços
“físicos”, mas também das apropriações simbólicas. É claro que, de
acordo com as justificativas mais evocadas, devemos considerar que a
UTFPR é uma jovem universidade federal, ainda que para efeito de
História reivindique uma inadequada e pouco efetiva presença centenária.
Desde 2005, quando foi efetivamente criada, a UTFPR cresceu muito em
extensão e importância, mas ainda esbarra no obstáculo erroneamente
erigido em torno da idéia de sua “vocação tecnológica”. O câmpus de
Campo Mourão, por exemplo, foi criado na metade dos anos 1990. Seus
blocos e salas de aula são novos, porque construídos apenas em anos mais
recentes. É um câmpus novo, de concepção arquitetônica bastante simples
e previsível. Eu costumo brincar com alguns colegas dizendo
metaforicamente que o longo corredor que dá acesso aos blocos principais
se assemelha a um “brete”. O brete é aquela estreita passagem,
geralmente de madeira, por onde passam individualmente o gado para fins
de vacinação, marcação com ferro quente, etc. Evidentemente, meu
comentário não visa desqualificar os engenheiros que planejaram a
construção do câmpus, mas aponta um de concepção e de comportamento: a
UTFPR/Campo Mourão não possui esquinas, e se você parar para conversar,
refletir e até “confabular” algo de diferente para aquele espaço,
certamente acabará atrapalhando a passagem dos outros, correndo o risco
de ser xingado por isto. Ninguém quer atrapalhar o passeio público e
quebrar a rotina, como ironiza Chico Buarque em sua música sobre o
operário que cai da construção numa cidade concebida de modo cartesiano
(“Construção”). E a UTFPR é assim: não há espaços de aglomeração de
estudantes. Sim, aqueles, onde a cultura e a arte de vanguarda
geralmente costumam florescer livremente. Não há espaços culturais
públicos, nem concha acústica. Não existe um parque onde os estudantes
possam namorar, tocar violão e tirar um cochilo depois do almoço. Também
não há bares em seu entorno, porque a universidade foi concebida como
um espaço isolado da cidade que segue reafirmando seu isolamento. Não
isolamento físico, mas simbólico. Ainda é uma universidade distante das
demandas e anseios da sociedade na qual se localiza. Quase não
desenvolve projetos de Extensão. Firma importantes e rentáveis parcerias
com empresas da cidade e região, mas não apresenta o mesmo ímpeto para
tratar do lixo, da rede de saneamento, do reflorestamento, da pequena
agricultura familiar e da reeducação alimentar da população pobre da
cidade. São ainda muito poucas as iniciativas neste sentido para uma
universidade que, apesar disto, já se propõe a ser uma referência
tecnológica para a cidade e região.
A UTFPR é uma jovem universidade
que se coloca como uma vanguarda tecnológica, mas sequer consegue
prover seus estudantes da crítica social e daquela importante atmosfera
onde surge o pensamento livre, as grandes teorias filosóficas, as
alternativas e o comportamento transgressor tão necessário à mudança
histórica. Mesmo se justificarmos se tratar de uma universidade ainda
jovem, ela apenas se assemelha a um prédio vazio à espera de moradores.
Novo em folha, cheirando tinta, mas sem vida, sem o colorido e o barulho
que é tão peculiar e necessário à vida acadêmica. Do ponto de vista
gerencial, tudo funciona como deveria ser, de forma cartesiana. Mas
ainda nos falta poesia. Faltam os grafittis. Faltam os acordes dos
violões que ensaiam as primeiras melodias de Raul Seixas, Renato Russo e
Beattles - sons tão marcantes na formação universitária até mesmo de um
jovem do interior do país, como eu. Faltam os murais, as pinturas.
Falta o colorido e a plasticidade que dá a certeza de que ainda estamos
vivos e resistindo à massificação e repetição que tende a tornar tudo
cinza, uniforme e sem graça, sem vida, sem gosto.
Nossos alunos,
futuros engenheiros ambientais e outros (simpatizantes de seu movimento)
estão de parabéns porque mesmo sem perceber estão conseguindo lutar
contra um paradigma cartesiano e contra a massificação que tem tomado
conta do amplo conceito de “universidade” no Brasil pós-neoliberal.
Estes estudantes estão ressignificando e criando seus próprios espaços
onde exercem novas práticas e outras formas de apropriação física e
simbólica. Com brilhantismo, conseguiram aliar a criatividade humana com
a segurança metódica da engenharia, “reinventando” e replanejando um
espaço aparentemente inócuo – o gramadão insignificante e perdido atrás
do ginásio -, transformando-o em seu espaço de convivência e arte,
soberania e luta. Deve ser por isto que já no primeiro Sarau, ocorrido
no final do ano passado (2011), mesmo em meio a uma grossa chuva, os
alunos permaneceram ali, sem arredar o pé, molhados e cantando a plenos
pulmões, prestigiando os poemas que tremulavam nos varais, conversando
entre si, fruindo e demarcando seu “direito” à arte mesmo em condições
aparentemente adversas. Resistiram à chuva como combatentes heróicos que
defendem a todo custo sua trincheira e sua posição conquistada. Sem
perceber, estavam demarcando um território simbólico que a cada dia mais
lhes pertence, por direito e por necessidade. Agindo desta maneira,
estes futuros engenheiros tornam-se produtores não apenas de espaços
planejados e prontos para a apropriação capitalista, mas também de
espaços soberanos e livres onde flui a criatividade, as expressões
individuais e coletivas, o convívio e a luta por alternativas melhores
do que aquelas que estão colocadas por aí. E mais do que isto: se hoje a
luta ocorre pela demarcação de espaços de cultura, amanhã, poderá ser
pela sede própria, pela moradia estudantil, por direitos sociais amplos,
por uma sociedade mais justa e igualitária. Uma luta que, recordemos,
começou tímida por questões específicas como o preço do salgadinho na
cantina; depois, tornou-se baluarte na defesa da educação pública de
qualidade durante a greve de 2012; estendeu-se pelo preço do passe
estudantil, pela estruturação do R.U., e agora vai ampliando cada vez
mais seus horizontes, como o direito à livre expressão, à cultura e à
produção de alternativas como forma de combate à massificação. Este tipo
de iniciativa feita pelos estudantes da UTFPR nos mostra que ainda é
possível sonharmos com o dia em que, neste país, as pessoas não tenham
mais que lutar para obter comida e água, mas possam se dedicar à arte, à
crítica literária, o prazer e liberdade de expressão, a comunicação e a
transgressão. E você aí, tem sede de que?
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